Hallelujah, a origem
Hallelujah é uma das canções mais carismáticas e famosas da história da humanidade, gravada e interpretada por mais de cem artistas dos mais diversos estilos. Foi composta pelo canadense Leonard Cohen e gravada no álbum Various Positions (1984). Sua criação levou cerca de dois anos; e o perfeccionista Cohen criou mais de 80 versos para ela. Isso fez com que ele próprio tenha executado-a com diferentes letras e interpretações ao longo dos anos. Dependendo do intérprete, a música pode ter entonação depressiva, exultante, sexy. Ela pode se tornar uma música nova a cada dia: depende do estado de espírito de quem a executa. É uma canção incrível em todos os sentidos.
Com esse poder transformador, seria no mínimo leviano expor aqui a origem definitiva da música. Há um livro feito apenas em torno dos versos de Cohen (The Holy and the Broken, de Alan Light). Neste texto, o NTR mostra a sua interpretação para Hallelujah, desenvolvida a partir de muita leitura, diferentes versões e, é claro, visão pessoal. A letra usada é a do cover mais consagrado, de Jeff Buckley, no álbum Grace (1994) – essa que você vê no topo do post. Fala sobre amor e a imperfeição problemática que é a experiência de amar.
Hallelujah
Ao que tudo indica, o próprio Leonard Cohen vem tentando, ao longo dos anos, compreender o uso da expressão Allelujah (Aleluia). Trata-se de uma palavra hebraica composta por Hallelu – “louvem, glorifiquem” assim no plural mesmo, um chamado a todos – e Jah – uma espécie de diminutivo para Jehovah, um dos nomes bíblicos para Deus. Cohen inicialmente queria manter a tradição milenar de canções com esse termo, mas desvirtuando-o do sentido religioso, como se o seu Hallelujah pudesse ir além disso. Pense nessa palavra como uma forma de exaltar tudo – tudo que é perfeito e o que não é; a vida. Nos versos, isso é permeado pelo sentimento de amar.
“A música explica que existem vários tipos de Hallelujah. Eu digo: todos os Hallelujahs, perfeitos e errados, têm o mesmo valor. É um desejo de afirmar minha fé na vida, não de uma forma religiosa, mas com entusiasmo, com emoção”, explicou Cohen, em entrevista de 1985. Nos versos, o imperfeito transparece, e apesar de tudo o que ele expõe, há sempre um Hallelujah, sempre o louvor, sempre a fé. O caminho que encontrou para mostrar isso foi justamente usando passagens bíblicas. Em cada verso cabe uma explicação histórica, religiosa e política que não será aprofundada neste texto. O NTR foi extremamente sucinto nesse aspecto. O leitor terá que nos perdoar.
Davi de Israel, Betsebá, Sansão e Dalila
Davi era um humilde pastor escolhido por Deus para suceder Saul como rei de Israel. Tinha muitos dons, dentre os quais a música – e é isso que fica evidente no primeiro verso. É dele o “acorde secreto” que agradava ao Senhor – Davi, integrado à corte de Saul, acalmava o espírito do monarca com sua harpa. Aí entra a genialidade de Cohen. Quando cita and it goes like this, the forth, the fifth, os acordes casam com a letra: as notas tocadas são exatamente do quarto e quinto graus da escala em que a música foi composta. O mesmo vale para the minor fall – um acorde menor que ‘derruba’ a melodia – e major lift – novamente um acorde maior.
The minor fall and the major lift é também uma referência de juízo: as pessoas pequenas caem, enquanto os grandes se erguem. Pela narrativa bíblica, Davi é escolhido por Deus como o sucessor de Saul. Ele governaria a Tribo de Judá e, depois, o reino de Israel. Cohen encerra a estrofe com “o rei desnorteado compondo o Hallelujah“. Isso já dialoga com a próxima estrofe, que aborda o episódio em que Davi, já rei, observa do alto do telhado Betsabá, mulher de Urias, se banhando – e é seduzido. Ele então a seduz e comete pecado aos olhos de Deus. Grávida, Betsebá torna-se mulher de David após a morte do marido no campo de batalha, mas seu filho morre por juízo divino. Punição.
Na sequência, Cohen evoca a história da gananciosa Dalila, que faz chantagem emocional para descobrir a força de Sansão e o faz adormecer sobre seu colo para que os filisteus cortem seus cabelos – tudo em troca de moedas de prata. Quando Cohen canta “e dos seus lábios ela desenhou um Hallelujah“, encerra um trecho da música que mostra como o amor pode levar a situações trágicas. No Livro dos Juízes da Bíblia, Sansão tem os olhos arrancados e é mantido prisioneiro dos filisteus, mas recupera a força com ajuda divina para pôr abaixo um templo, matando seus inimigos e também a si próprio.
Davi foi acometido pela luxúria ao ver Betsebá e pagou por isso. Sansão abriu seu segredo mais íntimo à mulher que amava e também pagou por isso. E, apesar da dimensão dessas ações e do amor envolvido, ouve-se de novo entoar: Hallelujah.
Nos dois versos seguintes, Cohen é mais direto e mais amargo. Ele fala sobre experiência com relacionamentos quando diz: baby I`ve been here before, I`ve seen this room and I`ve walked this floor. E mostra que sabe como é ser sozinho também. Então faz referência ao Marble Arch, arco de mármore erguido em Londres para dar acesso ao Palácio de Buckingham (hoje ele fica em um lugar diferente da cidade). Apenas a realeza podia passar pelo arco. Quando canta I`ve seen your flag on the Marble Arch, ele avisa que o amor não é uma marcha da vitória, algo que se domina e faz seguir um caminho determinado, sempre triunfante e organizado. Não. É um Hallelujah frio e quebrado.
A estrofe seguinte é ainda amarga, mas extremamente erótica. Começa com Cohen reclamando: houve um tempo em que o outrém o deixava ver o que rolava “por baixo”, mas agora essa pessoa não mostra mais nada. É um verso ambíguo: fala de expor sentimentos, mas também de ver o corpo nu, de se entregar ao sexo. Prova disso é o verso seguinte: se lembra quando eu entrei em você?. O termo holy dove – pomba sagrada – é um dos mais controversos. A palavra dove é constantemente substituída nas versões da música. É novamente ambíguo: pode significar paz – entre esses dois indíviduos, algo que já não há -, mas traz um toque de sacrilégio, como se o sexo fosse algo digno de adoração, sagrado.
No último verso, outra referência extremamente erótica: e cada suspiro que dávamos era um Hallelujah. O relacionamento claramente desandou, a forma de amar não é mais a mesma, mas ainda assim surge um Hallelujah.
Leonard Cohen de certa forma conclui tudo ao falar: “talvez exista mesmo um Deus, mas tudo que aprendi sobre o amor foi como atirar em alguém que desarmou você“. Ele usa duas imagens belíssimas: um choro no meio da noite ou alguém que “viu a luz”. Amar não é isso. É apenas um Hallelujah frio e quebrado. Hallelujah, Hallelujah.
PS.: Eis a versão de Rufus Wainright, que aparece no filme Shrek.