+1 Dose

 
José Silvério é narrador esportivo e dificilmente dá pitacos, mas outro dia, na Rádio Bandeirantes, disse algumas palavras fortes. Ele comentava as comemorações pelo centenário do jornalista Nelson Rodrigues quando chamou a atenção para o número exagerado de comemorações. “É aniversário de morte, aniversário de nascimento. Quer dizer: daqui a pouco ninguém morre mais. Todo mundo vai fazer 100 anos de morte em algum momento”, disse, propositalmente exagerado. É esse efeito que aparece sobre o Barão Vermelho, banda que lançou nova turnê comemorativa no último dia 20.

Mais uma vez, o Barão Vermelho volta aos palcos para comemorações. Desta vez, pelos 30 anos de lançamento do primeiro disco da banda, Barão Vermelho (1982). O álbum será relançado com novas versões das músicas e a inclusão de uma inédita, “Sorte e Azar”, última da parceria entre Cazuza e Frejat e que já está disponível para vendas no iTunes. Maurício Barros e Dé Palmeira, parte da formação original da banda, também devem dar as caras em alguns shows, que terão repertório de 27 músicas, bem focado no disco de estreia, é verdade, mas com grandes sucessos da carreira. E quando foi diferente?

A música “Sorte e Azar” é a última parceria inédita entre Cazuza e Frejat. A faixa não entrou para o álbum lançado em 1982 pois o produtor do disco, Ezequiel Neves, tinha uma superstição com a palavra “azar” e ela acabou ficando esquecida.

O último álbum de inéditas do Barão foi lançado em 2004 – por coincidência, também se chama Barão Vermelho – e não teve grandes hits, com destaque para “Cuidado” e “Chave da Porta da Frente”. O último sucesso, portanto, veio em 1998, com “Puro Êxtase”, do álbum homônimo. Nesses 14 anos, a banda lançou quatro registros para exaltar a própria carreira, sendo uma coletânea (Pedra, Flor e Espinho, de 2002) e três ao vivo (Balada MTV, de 1999; MTV Ao Vivo, de 2005; e Rock in Rio 1985, de 2007).

Para sermos justos, o Barão nem poderia ter produzido novidades, já que a banda passou por duas pausas anunciadas originalmente como hiatos por tempo indeterminado. O primeiro deles, depois do Rock in Rio 2001, durou três anos. O segundo, de janeiro de 2007, terminou no último sábado, com o lançamento da turnê +1 dose. Ok, relembrar é viver. Mas até quando? Praticamente, o Barão Vermelho só se reúne para rememorar a própria carreira. Basta citar que a ideia original era quebrar o hiato em 2011 para celebrar os 30 anos de formação da banda. Não deu porque Frejat estava em carreira solo. Então, tudo o que precisaram foi adotar a efeméride seguinte.

De novo!

Depois de três décadas juntos, com a identidade da banda mais que estabelecida, a base de fãs também, além de contar com o peso da figura póstuma de Cazuza, é certo que é bem complicado para o Barão Vermelho ir muito além em qualquer trabalho inédito. Esse é claramente o motivo das pausas: cada um vai fazer o que quiser sem ter que honrar a história da banda, sem correr o risco de desvirtuá-la. Triste é saber que só o que restou são as reuniões comemorativas. Por mais que os fãs adorem a fase áurea do Barão, é preciso mais.

Ira!, Engenheiros do Havaí e Kid Abelha são outras bandas de longa trajetória que pararam de tocar. Ainda mais recente foi a pausa do Foo Fighters. Músicos como Humberto Gessinger admitem a possibilidade de que elas nunca mais se apresentem. Mas se voltarem, que tenham o que mostrar. Mesmo que seja pouco, mas que mostrem alguma coisa. Não mais do mesmo.

 
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Já fui uma brasa, a origem

Há inúmeras canções de exaltação ao samba. Moleque Atrevido fala da nata do estilo, “linha de frente de toda essa história”, do “tempo do samba sem grana e sem glória”, e cobra: “respeite quem pôde chegar onde a gente chegou”. A Batucada dos Nossos Tantãs tem a mesma linha: “você não samba, mas tem que aplaudir”. O Show Tem Que Continuar ainda avisa: “todo mundo que hoje diz ‘acabou’ vai se admirar”. O papo é sério, e o discurso foi construído por grandes compositores. Antes deles, no entanto, Adoniran Barbosa, um dos maiores, lidou com a questão de forma totalmente diferente.

Em 1966, Adoniran Barbosa estava longe da mídia – o que na época significava o rádio e a recém-implantada televisão. O último registro do compositor havia sido gravado em 1958, com Pafunça/Nois não os bleque tais. A moda era a Jovem Guarda de Erasmo, Roberto Carlos e cia., o que deixava o sambista magoado. Neste ano, ele compôs Já Fui uma Brasa. A música é extremamente simples e traz na letra um relato conformado da falta de espaço que se deu diante da turma que chamava atenção no programa de nome Jovem Guarda, da TV Record.

Enquanto os roqueiros do Brasil usavam gírias para cativar o público (caranga, pão, broto, coroa, pinta, etc), Adoniran usou uma metáfora para explicar sua situação: “Eu também um dia fui uma brasa/E acendi muita lenha no fogão”. E segue o drama: “E hoje o que é que eu sou?/Quem sabe de mim é o meu violão”. É impossível não fazer ligação com uma das frases mais marcantes de Roberto Carlos e que simbolizava bem o estilo da Jovem Guarda: “é uma brasa, mora?”. Uma brasa é algo (provavelmente alguém) quente, muito bom. Assim como Adoniran um dia havia sido.

O verso que define isso vem logo na sequência: “Mas lembro que o rádio onde hoje toca iê-iê-iê o dia inteiro tocava Saudosa Maloca”. Esse é o ponto mais amargurado do discurso de Adoniran. Ele não exalta suas qualidades nem se autopromove. Pelo contrário: busca conciliação. “Eu gosto dos meninos desse tal de iê-iê-iê/Porque com eles canta a voz do povo”, diz o sambista paulistano. O último verso é o mais emblemático, dá impressão de ser dito sorrindo, meio como um aviso, uma ameaça. Dá até para sentir um tom de “respeite quem pôde chegar onde a gente chegou”.

“E eu que já fui uma brasa/Se assoprar posso acender de novo”.

Adoniran foi mesmo uma brasa. Viveu afastado do grande público após 1966, mas “renasceu” ao se tornar ator das primeiras novelas e programas da TV Tupi e também da própria TV Record. Gravou e eternizou Já Fui uma Brasa, um de seus maiores sucessos até hoje. É como se ele nem precisa dizer que tem que ser respeitado, aplaudido e admirado.

Boas versões do clássico foram gravadas por Arnaldo Antunes e pelo grupo Casuarina, com participação especial do cantor Frejat. Confira abaixo as duas versões.