Alagados, Trenchtown, Favela da Maré, a Origem


“Alagados, Trenchtown e Favela da Maré”, são as palavras mais importantes do clássico “Alagados”, composto por João Barone, Bi Ribeiro e Herbert Viana e gravado no excelente Selvagem? (1986).  Não são termos aleatórios, como podem parecer: fazem referências a grandiosas favelas que têm como característica em comum as construções em palafitas. E pra morar em condições dessas, só com muita fé – ainda que não se saiba fé em quê.

Filho do Brigadeiro Hermano Viana, militar de alta patente, Herbert nunca precisou morar sobre as águas, se equilibrando em tábuas e passarelas. Mas a difícil realidade das favelas mencionadas o atingiu mesmo assim: a Favela da Maré fica no Rio de Janeiro, local para onde mudou na adolescência e onde foi fundada a banda. Já Trenchtown, que fica em Kingston, Jamaica, ele descobriu lendo a biografia de Bob Marley, que por lá morou por anos.

Não há nenhuma ligação direta entre Herbert – ou mesmo com João Barone, que nasceu e cresceu no Rio de Janeiro, ou Bi Ribeiro, que é carioca mas morou em Brasília – com a Favela dos Alagados, em Salvador. Talvez ela faça parte do imaginário de Herbert pelo fato de ter morado algum tempo – a infância – no nordeste, em João Pessoa. Alagados é a base do refrão, a base de uma música de alta contestação social.

“Alagados” canta a dificuldade do pobre e a “arte de viver a vida” apesar de todas as dificuldades. Essa música, que tem uma constituição meio caribenha em meio a tantas percussões e pelos solos de guitarra, parece fazer menção ou criar uma ponte direta com outras duas grandes músicas brasileiras.

“Alagados” lembra muito “A Novidade”, que foi composta pela banda em parceria com Gilbert Gil e que também está em Selvagem?. Nela, Gil, autor da letra, usa a imagem de uma sereia para desvendar um “paradoxo na areia”: “alguns a desejar seus beijos de deusa”, “outros a desejar seu rabo pra ceia”. O caso termina como um “pesadelo medonho”, algo que permeia a realidade de “Alagados”.

Mas também lembra muito “Do Leme ao Pontal”, de Tim Maia – talvez pelos nomes citados no refrão. Nela, Tim exalta duas das mais belas praias do Rio de Janeiro. Entre uma e outra há muita beleza – Leblon, Ipanema e por aí vai. Quando o refrão para de ser repetido, Tim Maia solta as piores e mais sujas praias cariocas: Calabouço, Flamengo, Botafogo, Urca, Praia Vermelha. Está aí a contradição – e a crítica.

Os Paralamas do Sucesso também incluíram Tim Maia no repertório de Selvagem?, com uma versão reggae de “Você”, que seria depois emendada por muitas e muitas bandas – inclusive por Gilberto Gil -, com “Vamos fugir” e “Is This Love”, de Bob Marley – olhem só: é como um ciclo que se fecha. Para esclarecer, “Do Leme ao Pontal” também foi lançada em 1986. Suspeito que poderia ter sido ela a regravada, se a situação fosse outra.

Em “Alagados”, os  Paralamas se limitam à tríade “Alagados, Trenchtown, Favela da Maré”, mas a crítica vai tão longe quanto poderia, o que tornou a canção um dos maiores sucessos do grupo. Pode até ser considerada um clássico, embora muita gente saiba ou entenda sua origem: palafitas, condições precárias, sujeira e, principalmente, a “arte de viver da fé – só não se sabe fé em quê”.

PS: Justamente por ter no refrão termos aparentemente aleatórios – e, principalmente, em inglês -, “Alagados” entrou para o rol de músicas que permitem composições instantâneas: em vez de Trenchtown, os desinformados cantam qualquer outra coisa como “sem sal”. É o tipo de coisa que acontece com Cláudio Zoli em “Noite de Prazer”: “Tocando B.B. King sem parar” vira “Trocando de biquíni sem parar”. Muito curioso e divertido.

 

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